Descriminalização da Maconha: Rompendo com séculos de racismo e estigmatização
Descriminalização da Maconha: Rompendo com Séculos de Racismo e Estigmatização
A Cannabis, popularmente conhecida como maconha, é uma das plantas mais antigas utilizadas pela humanidade. Evidências históricas apontam que a Cannabis é utilizada há mais de 12.000 anos, com seu potencial terapêutico explorado pela humanidade há pelo menos 5.000 anos.
Na Índia, a medicina Ayurveda explora suas propriedades farmacológicas para tratar doenças como epilepsia, anorexia, anemia e náuseas há pelo menos 5.000 anos. Na China, ela era usada na produção de papéis, tecidos, fibras, cordas e tijolos. Na medicina chinesa, suas aplicações terapêuticas remontam a 2.300 a.C., sendo utilizada para tratar constipação, reumatismo, convulsões, entre outros males.
Com os movimentos migratórios e o estabelecimento de rotas comerciais, a Cannabis se espalhou pelo mundo. Na Europa, África e Oriente Médio, suas propriedades farmacológicas e industriais passaram a ser amplamente exploradas.
No Brasil, a Cannabis foi introduzida pelos povos escravizados trazidos da África. Enquanto o álcool e o tabaco eram os entorpecentes das elites, a Cannabis era difundida entre escravos e trabalhadores.
No início do século XX, iniciou-se uma grande campanha internacional para estigmatizar a planta. Com isso, a Cannabis deixou de ser reconhecida como um remédio e passou a ser classificada como uma droga, tornando-se objeto de políticas criminais na maior parte dos países.
Após a “Convenção Internacional do Ópio” (1912) e a “Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Ilícito de Drogas Nocivas” (1936), a proibição da Cannabis se consolidou mundialmente.
No contexto brasileiro, a proibição da Cannabis reflete os problemas sociais do período pós-abolição da escravidão, onde havia uma busca por suprimir a cultura da população afro-brasileira. Assim, o uso da Cannabis, associado às classes mais baixas e aos costumes afro-brasileiros, foi combatido e estigmatizado. Essa repressão é fruto de políticas higienistas que institucionalizaram a discriminação dos costumes da população negra e periférica.
Mesmo após a abolição formal da escravidão, a sociedade buscava combater e exterminar os costumes trazidos pelos povos escravizados. Dessa forma, sendo o uso da Cannabis um desses costumes, logo passou a ser uma prática mal vista que deveria ser combatida.
Sob essa perspectiva, devemos ir além e superar a ideia de que a proibição da Cannabis no Brasil surgiu como política de saúde e de segurança pública. A partir de uma compreensão crítica da realidade, observa-se que a repressão à Cannabis surge através de políticas higienistas, por meio da institucionalização do racismo e da discriminação dos costumes e da cultura da população negra e periférica.
Essa política, combinada com as influências das movimentações proibicionistas do início do século XX, acabou contribuindo para a estigmatização e criminalização da Cannabis.
Nesse contexto, a política criminal proibicionista adotada pelo Brasil deixou de considerar o uso medicinal da planta e suas milenares aplicações terapêuticas, voltando-se à construção de normas penais proibitivas e não regulamentadoras do uso terapêutico.
Por isso, o julgamento do Recurso Especial de n° 635.659, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que descriminaliza a maconha, apesar de ainda não ser o ideal, significa um importante progresso no que diz respeito ao rompimento com esse pensamento racista e higienista que marca a história da proibição.
Ao romper com a lógica punitiva e estigmatizante que historicamente marginalizou comunidades e culturas, o Brasil abre espaço para um debate mais amplo sobre saúde pública, direitos individuais e justiça social.
Letícia Machado
OAB/PR 120.614